
Nascido em Lisboa, Manuel João Vieira vive em Campo de Ourique há mais de cinquenta anos. Numa longa entrevista intimista e franca, o artista abordou os mais diversos temas à revista Notícias Magazine.
Campo de Ourique
“As memórias mais antigas que tenho do meu bairro são imagens da minha casa, tinha eu talvez uns 3 anos. Lembro-me de ir com a minha avó à igreja, de ir comprar uns maços de cigarros para a minha avó com o meu primo, lembro-me de jogar ao berlinde. Do jardim-infantil, lembro-me das festas, das batas e dos bibes.”
Liceu Francês
“Andei no Liceu Francês, na secção francesa. Mas só porque tinha uma tia – a minha tia Manelinha – que era lá professora. Era sobretudo um rapaz bastante solitário. Tinha um amigo ou dois e um mundo muito próprio.
Com um primo que vivia comigo, fazia coisas como esburacar as paredes de casa. Achava que elas guardavam um tesouro. E andava sempre à bulha. Desde que saí do Liceu Francês, nunca mais estudei. Cheguei ao (ciclo) preparatório português e percebi que não era preciso estudar. Basicamente, era muito fácil. Com exceção para a Matemática de 11º ano e Geometria Descritiva, na Faculdade. Aí fui obrigado a estudar. Mas recordo que, na altura, a média de entrada para Belas-Artes era 9. A minha não era grande coisa – eu também não me esforçava grande coisa – mas sempre era um quinze”.
Desenho
“Acho que temos uma história de excelentes desenhadores em Portugal, como o Fernando Brito, o Pedro Proença ou o Jorge Queiroz. No meu caso, desenhar a tinta-da-china é escrever uma espécie de solo de jazz ou de discurso indelével. Bem, posso sempre rasgá-lo e metê-lo no caixote. Respondendo à pergunta: muito, muito, cedo. Mas não era o único. Tinha colegas que também desenhavam. Eles carros, eu desenhava cavaleiros. (…) Nos primeiros anos, desenhava por compulsão. E quando se repete muito uma coisa ganha-se treino e uma tendência mecânica para a fazer. Apesar de tudo, havia alguma diferença entre a banda desenhada que fazia com seis anos e a que fazia com 18. Aprendi a ler antes dos 6 anos, com livros de banda desenhada. Nessa idade, a senhora Beatriz, que tinha uma livraria de coisas em segunda mão, trocava-me livros de BD. Sim, aos seis fazia já uma espécie de banda desenhada. Os heróis eram uns gatos.
Música
“Nos anos 80, achava a música pop completamente imbecil, a começar pelas letras. Era um rumo atrasado mental, uma coisa simples e idiota. Reagi a isso fazendo uma música assumidamente idiota, com letras idiotas, juntando as caralhadas a uma vertente surrealista. Não vou falar de grandes nomes como Frank Zappa ou Georges Brassens, que utilizaram uma linguagem obscena – mas era meu objetivo quebrar aquele tipo de música. Nunca pensei que fosse para continuar até hoje. A partir de certa altura, os Ena Pá 2000 deixaram de cobrir todo o espetro musical que me interessava. Acabei por diversificar em várias bandas, mantendo em comum a letra – ou obscena ou surrealista ou crítica ou caricatural. Comecei a ganhar algum dinheiro com as bandas e isso deu-me jeito. Na altura, ganhava dinheiro com a venda de arte e com as bandas. No caso dos Ena Pá 2000, se calhar criámos um monstro. Há um tipo de linguagem que acabou por se popularizar noutras áreas que não as da música. Embora hoje em dia as canções continuem a estar proibidas na rádio. Nessa matéria, estamos num nível quase anterior ao 25 de Abril. Se analisarmos do ponto de vista meramente musical, é uma banda perfeitamente normal, mais para o bom. Os arranjos, etc., tudo o que se ouve, se não percebermos as palavras é uma banda porreira. Tanto uma como a outra. Mas parece que as pessoas se preocupam apenas com as letras, ostensivamente estranhas. Coisas como Frank Zappa não têm um grande problema na América. É um problema em Portugal.”
Pintura
“Acabo por dar tiros no pé sistemáticos e não sei muito bem como hei de sair disto. A minha atividade musical colide aparentemente com a minha atividade como pintor. De vez em quando penso nisso. Mas gostei muito de fazer tudo o que fiz até agora. Foi muito divertido. Fiz concertos em que me diverti, gosto muito dos discos, acho que são bastante razoáveis. Sinto-me contente com o trabalho feito. Nem sei se seria possível fazer de outra maneira, para dizer a verdade. Estou muito satisfeito com a maioria das exposições que fiz. Lamento ter-me estado completamente nas tintas para uma carreira dentro das artes plásticas. Ou da música. Fui indolente e intolerante, mas é a vida. Em ocasiões terei sido inconveniente e arrogante, mas neste momento sou um gajo completamente normal e dou esmola ao tipo que toca acordeão na esquina. Espero que um dia ele faça o mesmo por mim.”
Censura
“É normal em Portugal, sobretudo na rádio. Compreendo que no horário nobre se evitem certas músicas. Mas a verdade é que não passam sequer as que não têm essas características. Além do disco que saiu agora com a Blitz, com várias bandas minhas não editadas, como o fabuloso quarteto 4444, editou-se em agosto um disco dos Irmãos Catita mas as pessoas não sabem que existe porque não passa na rádio. E eu não tenho tempo para andar a chatear ninguém. Dava-me jeito ter uma secretária. Mas só quando tiver uns tostões. Agora estou a pagar a Segurança Social, as multas do IRS, as da polícia municipal. Aliás, as multas parecem ter vida própria, como aqueles dragões fabulosos que apesar de terem várias caudas cortadas continuam a renascer.”
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